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Como a sapatilha retomou o posto de item de desejo
Em uma cena marcante de “Succession”, Tom Wambsgans, marido alpinista social da herdeira Shiv Roy ridiculariza Greg com um item inusitado: o tamanho da bolsa de sua acompanhante. Tom questiona o que, afinal, aquela bolsa “ridiculamente espaçosa” -uma Burberry de quase US$ 3.000- esconde: uma marmita? Sapatilhas para usar no metrô?
A praticidade pode ser motivo de piada para o ricaço, mas impulsionou a volta do modelo de calçado que estava em baixa e retoma as prateleiras com tudo, inclusive com preços altíssimos. Só na semana de moda de Nova York, apareceram recortadas no desfile da Tory Burch, felpudas no de Paul Anderson e em delicadas tramas transparentes no retorno de Phillip Lim às passarelas.
O reboliço, na verdade, começou algumas temporadas atrás, quando a caçulinha da Prada, a Miu Miu, mirou as sapatilhas de balé na coleção outono/inverno de 2022. O sapato apareceu em uma versão totalmente inspirada no mundo do balé, com tons pastel, tecidos acetinados, faixas elásticas e até polainas para acompanhar.
Não demorou para que o par de R$ 5.700 virasse febre nas redes sociais e se tornasse símbolo máximo da modinha “balletcore”, mais uma das tendências ultra específicas que arrebata as tribos do TikTok de tempos em tempos.
Giovanna Bedinelli, analista da empresa previsora de tendências WGSN, afirma que o calçado está no mapa desde 2020, impulsionado, principalmente pelo estilo de dança que o originou. Ela afirma que é justamente o TikTok e a estética da feminilidade e suavidade que elevam o sapato ao status de febre, aliado à queda de popularidade dos saltos altos.
Segundo a doutora em história da moda Maíra Zimmermann, a sapatilha ressurge agora em um momento pós-pandêmico como uma resposta mais arrumadinha à cultura do conforto e dos tênis, que dominou o mercado de calçados desde o surgimento da streetwear, na década de 1990.
Naquela época, enquanto a roupa de rua remetia ao mundo informal dos esportes, mulheres de negócios se armavam em seus terninhos estruturados, os power suits, como forma de se impor no mercado de trabalho dominado por homens. Ali, era impensável descer do salto.
Os tempos mudaram. “A mulher atual trabalha, pega metrô, tem filho. Usar salto no dia a dia hoje é como usar um espartilho”, diz Débora Leal, dona da marca de sapatos Manolita, com lojas nos Jardins e no shopping Cidade Jardim. “Depois da pandemia volta uma vontade de se arrumar um pouco mais. A sapatilha permite isso, como o sneaker, mas sem perder o conforto”, diz.
Mas a sapatilha vinha de um período em baixa. Até a aposta da Miu Miu, o calçado amado pelos nascidos de 1980 a 1995 havia sido decretado como cringe, ou seja, cafona, pela geração Z, que sepultou no mesmo balaio a calça skinny, o cabelo repartido de lado e o café da manhã.
Ironicamente, segundo Zimmermann, a peça descendente do universo da dança foi apropriada para o dia a dia bem quando a ideia de juventude se consolidou, nos anos 1950. Em relação ao obrigatório scarpin de salto, significava liberdade de movimento, experimentação e conforto. Era o sapato perfeito para a juventude que se formava no pós-Segunda Guerra.
Mas foi nos anos 2000 e não nos 1950, afirma a historiadora, que as novas gerações pescaram a sapatilha. Ela diz que os jovens de hoje idealizam a virada do milênio e buscam referências vintage ali. A sapatilha acabou adotada, mesmo sob etiqueta de cringe, assim como o jeans de cintura baixa, as câmeras Cybershot e celular sem internet. “Tem um ar nostálgico”, afirma a pesquisadora.
E não faltam representantes ilustres para a moda. Ela cita Amy Winehouse, morta em 2011 aos 27 anos, como uma das precursoras da tendência. Zimmerman afirma que mesmo a inglesa já apostava no ar vintage -nesse caso, vintage anos 1950– quando usava a peça. “Mas em versão caricata e disruptiva do retrô”, ressalta. O rosa bebê encardido e furado das sapatilhas de balé desgastadas pelo asfalto londrino que o digam.
Conterrânea de Winehouse, a ex-modelo Kate Moss é conhecida até hoje como a rainha das sapatilhas, especificamente as da francesa Repetto, loja que nasceu como produtora de peças para dança e hoje se vende como grife de estilo de vida.
A marca, aliás, foi quem vestiu os pés de Brigitte Bardot em “E Deus Criou a Mulher” (1956), considerado um marco cultural da ideia de liberdade sexual feminina. Junto com “Cinderela em Paris” (1957), em que Audrey Hepburn contracena com Fred Astaire e faz uma dança contemporânea boêmia usando sapatos sem salto, o filme estrelado pela francesa cimentou a sapatilha como significado do movimento livre.
Também inspirada no universo cinematográfico, Patrícia Giufrida, fundadora da grife Pége, criou as sapatilhas da marca, ainda em 2018. Ela diz ter buscado cores nos filmes do diretor francês Eric Rohmer. “Quando fiz a sapatilha, algumas pessoas questionaram”, ela conta. Mas o modelo virou best-seller da marca e continua disponível até hoje.
Giufrida diz, ainda, que a aposta da Miu Miu renovou o interesse pelo calçado -e refletiu até nas vendas da sua loja. “Tive que refazer um pedido no sapateiro. Muitas pessoas pediram até uma versão mary jane.”
Essa versão, com uma faixa sobre o peito do pé regulada por uma fivela ou uma amarração, foi a aposta de Priscila Casna, à frente da marca de sapatos veganos Giup, em sua coleção de estreia, lançada em 2022.
“Para mim, nunca saiu de moda. Quando desenhei, ele nem estava sendo tão aceito. Agora, com as novas tendências, já vejo um movimento de retorno.” Casna diz que o modelo é o mais vendido da marca desde a estreia.
Embora seja um clássico, a sapatilha –e os sapatos sem salto no geral– nem sempre foram o gosto padrão das brasileiras, segundo Leal, a dona da grife Manolita. Ela diz que quando lançou sua marca, há dez anos, optou por limitar os saltos do cardápio para oferecer conforto e propor outros ideais de sensualidade e feminilidade.
“A mulher brasileira tinha pegada sexy, usava muito salto, usava meia pata [um salto extra na frente do sapato que dá mais elevação e suporte]”, diz. “Olhando para o mercado europeu, vi que dava para ser feminina sem abrir mão do conforto.”
Ela nunca mirou ser uma marca só de sapatilhas, mas diz que as ballerines estão entre os três modelos mais vendidos desde agosto do ano passado. Hoje, além das clássicas em couro em diversas cores, Leal criou modelos em veludo e em tela.
As sapatilhas agora transcendem a barreira de gênero. O fashionista Harry Styles, que angariou admiradores e críticos em igual medida por aparecer de vestido na capa da Vogue em 2020, usou o calçado em uma versão branca na capa de seu último álbum, “Harry's House”. A demanda aparece no mercado nacional -Giufrida, da Pége, lançou neste ano um modelo com a forma mais larga, mirando consumidores homens.
“A sapatilha ganha força em um momento que a moda fica hiperfeminina”, afirma Giufrida. Ela acredita que, após um período em que o feminismo significa usar calça e apostar em roupas mais masculinas, agora, o jogo virou e é possível passar a mesma mensagem com outras referências.
“A sapatilha traz a ideia que o vestuário agênero não precisa ser a roupa masculina, a camiseta e tênis”, diz Zimmerman, a historiadora. Ela acredita que a apropriação do guarda-roupa feminino por homens denota uma mudança nos códigos da feminilidade e um entendimento de que esse universo não é fútil.
Apesar dos aumentos e quedas de popularidade, tanto Zimmerman quanto as criativas por trás das marcas ouvidas pela reportagem veem a sapatilha como um clássico atemporal. A historiadora diz, ainda, que devemos mudar a forma de olhar para o que está em voga se quisermos entender a importância desse calçado.
“A sapatilha é um item que nunca saiu, de fato, de moda depois que entrou. É um certo etarismo olhar só para grifes e só para jovens. Tem senhoras que usam sapatilha desde sempre”, diz a pesquisadora.
Ela se refere não só às madames que usam e abusam das tradicionalíssimas sapatilhas de pontas escuras da Chanel –lançadas por Karl Lagerfeld em 1984–, mas aos modelos vendidos a preços acessíveis, que continuaram firmes e fortes nas prateleiras das lojas de departamento, indiferentes à nova etiqueta de cringe.
“Não é sempre que uma tendência é sobre algo disruptivo”, afirma Bedinelli, a especialista em tendências. “Na verdade, a maioria não é.”
Fonte: DOL – Diário Online – Portal de NotÍcias